sexta-feira, 25 de maio de 2007

Seu Nome era: José Manuel

Bem, Ti' Zé Moleiro não era o seu nome.
Chamava-se apenas José Manuel.
Aliás chamavam-lhe Zé Moleirinho, para o destinguir do seu Pai a quem chamavam José Moleiro e esse, sim, pelos vistos, era mesmo moleiro de moinho de vento:
Chamo-me José Manuel
Mas que triste sorte a minha
Chamam-me José Moleirinho
Mas eu nunca fiz farinha.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

As Gerações Anterior e a Actual

Ontem faleceu a Ti' Rosa, última irmã sobreviva do Ti' Zé Moleiro. Fomos com ele visitá-la há poucos meses.
Estava cega há meia dúzia de anos, ia quase nos 97.
É uma geração que termina. Uma geração que sobreviveu a duas guerras mundiais, que passou dificuldades, privações, ... trabalhos!
Uma geração que, com as suas limitações, conseguiu transmitir a Fé à geração seguinte.
Hoje não haverá tantas privações, mas a transmissão da Fé às gerações seguintes não estará mais facilitada. O individualismo e a autosuficiência parecem colocar o homem como o deus de si próprio e o homem parece gostar e querer acreditar nisso.
De facto não haverá maior dignidade do que reconhecer-se, a si e aos outros, como Filhos de Deus.
Mas devemos reconhecê-LO como Criador e Pai.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Um Furo de Água Fresca: A Tenacidade

Quando pagaram as terras ocupadas pela Barragem, os meus sogros compraram um apartamento e foram morar para a Vila de Messines, em 1992. Um rés-do-chão a 200 metros do Centro de Saúde.
Ele tinha 84 anos.
O quintal, nas traseiras do apartamento, era pequeno, talvez uns 25 m2. De início, para além do tanque de lavar a roupa e dos estendais, ainda tinha os vasos de flores da Ti'Piedade, um limoeiro, cebolas, alface, tomateiras, as couves do caldo verde e umas pezeiras de salsa e hortelã. No muro de tijolo, ao fundo, que suporta as terras, fez uns buracos onde plantou umas vides que depois armou em parreiras, que dão sombra para o quintal e uvas deliciosas. Depois fez o furo, o forno, a oficina, acimentou a maior parte do chão e fez um muro a desenhar um canteiro onde pouco mais ficou, para além dos vasos, que as couves do caldo verde, a salsa, a hortelã e o chá da bela-luísa (lúcia-lima).
Mas o que gostava mesmo, era de contar como ele fez o furo, pois demonstra a sua paciência, persistência, resistência, habilidade e inteligência. Fê-lo sozinho, durante meses, com cerca de sete metros de profundidade.
O furo foi feito no canto do lado direito. O solo é de argila vermelha pesada e compacta. As ferramentas foram feitas com varas de eucalipto e canas, com encaixes resistentes para poder trabalhar no fundo do furo, mas fáceis de desengatar para poderem ser desmontadas, ao serem retiradas. Uma tinha na ponta uma lâmina em ferro para furar e cavar. Outra era redonda para manter o furo circular e à mesma largura. A que tirava a terra era a mais complicada: Cortou um farolim de motorizada ao meio. Fixou essas metades num eixo na ponta duma vara, ligadas por uma mola, como duas mãos viradas uma para a outra. Um dispositivo, acionado por um fio, destrancava a mola e fazia com que as metades se fechassem. Abria as duas metades antes de as introduzir no furo, quando chegava ao fundo puchava o fio para destrancar a mola e apanhava um punhado de terra, que puchava para fora. Por cima da cabeça tinha um suporte que servia de guia às varas que constituiam os cabos das ferramentas. O furo foi ganhando cada vez mais água e dificultando cada vez mais a tiragem da terra. Comprou tubo, com cerca de 20 cm de diâmetro, e entubou-o até ao fundo. Na parte superior fez um gargalo em pedra e cimento, com tampa de metal que ele fez. Colocou-lhe por cima uma roldana e mandou fazer um balde cilíndrico com válvula no fundo, que enche em contacto com a água.
Orgulhava-se de dizer que era uma água boa e fresca...
Melhor que a da torneira!

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Para mais tarde recordar: Uma Vida Cheia


A Marta levou algumas peças, ferramentas, para o museu.

Eles gostaram e pediram alguns dados sobre o avô:


Nome: José Manuel
Data de Nascimento: 21-11-1908 (F.17-03-2007)
Local de nascimento: Sítio do Semedeiro
Local de onde vieram as peças: Passadeiras
Freguesia: São Bartolomeu de Messines
Concelho: Silves


Principal actividade, Agricultor: Cerca de 10 hectares entre regadio e sequeiro. Chegou a produzir cerca de 650 arrobas de milho de regadio, por ano (cerca de 10.000 kg). Fazia, sobretudo, agricultura de subsistência: Trigo, batatas, cebolas, alhos, feijão, grão-de-bico, azeite, vinho, cevada, aveia, centeio, tomate, melancia e melão, hortaliças, alfarroba, amendoim, forragens para criação de animais, laranjeiras, sobreiros e eucaliptos. Criava vacas, porcos, burros, mulas, galinhas, coelhos, patos, cães, pombos, etc.
Era um enxertador habilidoso: Raro era o enxerto que não pegava. Tinha formas de enxertar, de anilha, por exemplo, que não veêm nos compêndios da universidade. De cabeça, fazia as contas primeiro que os outros com papel e lápis.
Gostava de caçar a lebre, o coelho, a perdiz, a rola, o melro, etc., com espingarda e esparrela, laço, rede, ratoeira feitos por ele.
Às vezes ia à pesca à Ribeira (de Arade) com covo (que ele próprio fazia), anzol, rede ou tresmalho, e pescava o robalo, a enguia, o achigã e a carpa.
No ano que a Barragem (do Funcho) encheu fez uma jangada com quatro bidões.

Trabalhava a madeira desde a serração à carpintaria: Fez o próprio banco de carpinteiro, portas, janelas, carros de bestas, carros de mão, mesas, cadeiras, armários, camas e ferramentas diversas.
Gostava de trabalhar com metais, sobretudo a fazer ferramentas.

Trabalhava como pedreiro: Ajudou o seu pai a fazer, em taipa, a casa onde com ele viveu e depois, quando casou, fez, igualmente em taipa, a sua própria casa: com sala de entrada, sala de estar, quatro quartos, cozinha, casa de banho e os anexos: celeiro, alpendre, palheiro e currais dos animais, desde os alicerces até ao telhado. Fez o forno do pão. Fez a eira e o poço e empedrou-os. Fez a mina em frente de casa. Fez o poço da várzea, com mina, empedrou-o e fez a casa para o motor e a casa da várzea. Fez a canalização subterrânea na várzea e os tanques para lavar a roupa. Tinha uma pequena barragem na encosta para as águas sanitárias de casa.
Chegou a ir vender aguardente de medronho, com uma besta, ao Alentejo, onde foi vários anos à ceifa. Já depois dos 70 anos, quando deixou de ter animais de carga, tirou a carta de motorizada e conduzia um triciclo a motor que os filhos lhe ofereceram. Com 80 e tal, quando foram viver para Messines, ainda fez sozinho o furo, no quintal, cuja água fresca ele preferia, o forno do pão, e a casita da oficina onde ele passava horas a fazer miniaturas de alfaias agrícolas e a esculpir a cortiça. Também era frequente encontrá-lo a ler os seus livros de meditação e de orações que ele relia desde a juventude. Na Missa do Domingo era fácil encontrá-lo na Igreja, bastava procurar a cabeça mais branquinha.
Foi emigrante, pouco tempo, em França.
Foi casado com a Ti'Piedade com quem festejou os 67 anos de casados. Tiveram cinco filhos, dois rapazes e três raparigas, para além de dois gémeos que não sobreviveram.
Sobreviveu dezoito meses à viuvez. Nesse tempo, em Faro, ainda fez um banco de carpinteiro, uma cadeira com assento tecido em cordel, uma mesa para o grelhador forrada a inox, várias ferramentas e ajudou a fazer a casota do cão. Aprendeu a utilizar o telemóvel.
Este ano ia fazer 99.
Amanhã faz dois meses...

Poema de Vida: Um Testemunho.

Sem comentários,
aqui fica o poema da Ti Ti ao Ti' Zé Moleiro:

Passou na vida
Vivendo
Viveu com intensidade
Amou a todos
Sofrendo
As exigências e a saudade
Falou com sabedoria
Sorriu com paz e alegria
Trabalhou sem se queixar
Foi generoso no dar
Foi aceitando a mudança
Com um sorriso de Esperança
Deixou-nos como
Herança
Além de muita saudade
A Paz e a Serenidade


( Ti Ti, 18-03-2007 )

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Uma Recordação. Um Símbolo.


Gostava de guardar, como recordação, um objecto pessoal do Ti' Zé Moleiro. Um objecto que ele tivesse usado. Um dia perguntei-lhe onde estava o relógio que se tinha avariado. "Está lá para casa". Não tive coragem do lho pedir, pois pareceu-me que outras pessoas o quisessem guardar como recordação. Era de corda, tinha-lhe custado quinhentos mil réis e usara-o mais de trinta anos. O novo, comprado há pouco, era muito parecido.

Naquele Sábado de manhã, quando recebemos a notícia do seu falecimento, procurei um pouco de isolamento, dei a volta à casa, para os lados do forno e, sobre as telhas, apanhei uma pequena chávena de barro. Seria o caneco de Leonardo Boff, 'sacramento do pai'. Mas não me tocou como símbolo, ainda anda no carro.

No dia 4 de Maio, estava a retirar o resto das coisas do alpendre por causa da visita do comprador, e, no lixo que ficou depois de ser retirado o seu banco de carpinteiro, encontrei o seu fio de prumo: Sujo, gasto, o cordel era apenas um coto... mas era uma boa recordação!

Em casa, nessa noite, limpei a madeira, retirei a terra e os restos de cimento do peão, poli-o e coloquei um cordão novo. Agora está junto à sua fotografia no móvel da sala.

Faz-me lembrar a sua verticalidade.
A sua vontade de justiça e de verdade.
A justeza das suas afirmações. A sua visão da vida.
É um bom símbolo para recordar o Ti' Zé Moleiro.